Blog da Perestroika

domingo, 18 de novembro de 2007

Construção de personagens

Um dos assuntos que eu mais tenho estudado nas últimas semanas, e que tem boas chances de aparecer nos novos projetos da Perestroika, é construção de personagens. Coincidência ou não, recebi por email um texto do Fernando Meirelles falando exatamente sobre isso.

A dica foi do Guilherme Rech, indicado da Turma 1, que viu no Blog do Ensaio Sobre a Cegueira:
http://blogdeblindness.blogspot.com. Por sinal, o Blog em si já é uma dica ainda melhor que o próprio post.

Pra quem não sabe, Ensaio Sobre a Cegueira é uma adaptação do best-seller do Saramago que vai para o cinema pelas mãos do Fernando Meirelles.





Post 8: Sobre Esmalte, Maconha e Lance de Dados.

Durante um ensaio, o Gael (García Bernal) andava vendado por um corredor cheio de lixo cenográfico quando pisou num tubinho circular. Abaixou-se, pegou o volume sob seus pés e sem saber do que se tratava, desrosqueou a tampinha e cheirou. Era esmalte. Teve um impulso de passar na unha, mas se conteve. Esta pequena experiência casual modificou a linha de seu personagem e, com isso, o filme todo.

Convidei o Gael para fazer o papel do Rei da Camarata 3 porque imaginei que ser ia mais surpreendente um vilão boa pinta, com cara de garotão inofensivo. Já haviam me dito que ele é um ator que costuma interferir bastante na criação de seus personagens e essa foi mais uma razão para chama-lo. Gosto de ouvir idéias alheias e as uso sempre. Quando a gente coloca fichas no inesperado, ele acontece. Paguei para ver.

O Gael chegou no Canadá só em nossa terceira semana de filmagens, e foi no seu primeiro dia de ensaio que ele pisou no tal vidrinho. Ao cheirar o esmalte, pensou que o mesmo poderia acontecer com seu personagem e, portanto, o Rei da Camarata 3 poderia perfeitamente estar com as unhas pintadas na cena onde promove uma orgia com as mulheres das outras camaratas. Achei a idéia meio esquisita, mas dei corda. Não queria cortar a onda dele no nosso primeiro dia de trabalho. Quando a Micheline, maquiadora, soube disso veio me perguntar se eu queria mesmo pintar as unhas dele de vermelho. Minimizei:
"A cena é escura, nem vai dar para ver direito. Allons y*"
(* "Vamos nessa", em francês. Ela é de Quebec)

Para que o personagem não fosse confundido como uma drag-queen em potencial, ou para que o espectador não achasse que estivesse assistindo a "Má Educação-II" ao ver o mexicano com as unhas pintadas, antes de rodar a primeira cena do Rei pedi que ele encontrasse o esmalte por acaso, enquanto falava seu texto. A idéia era fazer o uso do esmalte parecer mais acidental e menos intencional. Só que ele foi muito mais longe e fez metade da cena mais concentrado no esmalte do que em seu texto. Achou o frasco, pegou, abriu, cheirou, passou o esmalte em cada unha, assoprou, esbarrou no vidrinho que caiu no chão, saiu procurando. Ia falando com os outros personagens completamente distraído, interessado apenas no esmalte. A cada tomada, ele acrescentava mais algum detalhe desta historinha paralela. O resultado ficou muito engraçado. O vilão cruel ficou parecendo um trapalhão que havia fumado três baseados, alheio ao sofrimento que estava provocando ao seu redor. Um cara mais irresponsável do que perverso e talvez por isso mesmo até mais assustador. Gostamos do resultado.

Uma vez encontrado este tom, resolvemos fazer as outras cenas do Rei na mesma direção. Com isso esse vilão meio xéu-bléu-bléu acabou virando o personagem mais cômico do filme. O espectador deverá detestá-lo por suas atitudes mas, ao mesmo tempo, poderá ter alguma simpatia pelo seu tom de moleque descompromissado. Humor é sempre um golpe baixo. Difícil resistir.

E foi assim que aquele pequeno incidente no corredor funcionou como um gatilho para que o Gael inventasse seu personagem. O tom encontrado trouxe oxigênio para a história e abriu um viés que não estava nem no roteiro e nem na minha cabeça no início das filmagens.

Lição do dia:
Criação é assim. Como um lance de dados, jamais abolirá o acaso.

5 comentários:

Anônimo disse...

Esse cara é ninja.
Corram pro blog!

Lucas M disse...

"Tudo pode acontecer" é o bixo.

Bruno Pommer disse...

 + D na hora

Anônimo disse...

as surpresas impensáveis, são o que dão sentido para certas coisas.

Tuts disse...

Acho que é por isso eu escuto e observo mais do que falo :)!